(Dn 6)
Eduardo Ribeiro Mundim
Esta é uma história conhecida, e trágica. Trágica porque fala de
fracasso, julgamento, ruína e morte. É uma história, desde o
início, pessimista, onde apenas aspectos e fatos negativos são
claramente visíveis.
Também é uma história que traz suas perguntas. Se a própria
historicidade do livro de Daniel é colocada em dúvida por alguns,
que diriam deste capítulo? Objeções históricas há, mas nada que
não possa ser contornado: por que Baltazar chama a Nabucodonozor
pai, se não era seu filho? A história geral desconhece Dario, o
medo; o rei persa que tomou Babilônia foi Ciro.
O relato igualmente alerta para a variedade de prismas sob os quais a
história humana, e as nossas histórias individuais, podem ser
olhadas. É importante comentar que o fato de existirem óticas
diversas não implica em exclusão mútua, como se apenas uma visão
fosse o retrato acabado e completo da realidade. Diversas visões
implicam sim, em riqueza de acontecimentos e em complementariedade
entre eles.
Babilônia já existia quando Hamurabi, um dos primeiros grandes
legisladores, reinou, no século XVII a.c.. Passou por altos e
baixos, sendo Nabucodonozor II seu último grande rei. Ele sitiou
Jerusalém e, em duas ocasiões, promoveu uma deportação maciça
das elites judaicas para a Babilônia. Baltazar, que aparentemente
não tinha direito ao título de rei, foi governante em uma época de
decadência.
O texto traz algumas informações a respeito dos personagens
envolvidos:
-
A festa promovida pelo rei contava com um grande número
de convidados (pelo menos 1000 dignatários, fora as concubinas) e de
bebida. (v. 1)
-
A decisão de Baltazar foi tomada estando ele "sob
o influxo do vinho", após ele ter "bebido vinho diante
desses mil", o que sugere, no mínimo embriaguez. (v. 2)
-
Aparentemente, apenas Baltazar preocupou-se com o
escrito miraculoso na parede, que estava facilmente visível aos
convidados. (v. 5)
-
Ele perdeu o controle sobre si (ficou apavorado):
empalideceu, não sabia o que pensar, perdeu as forças e pôs-se a
tremer, chamando os sábios aos berros. (v. 6 e 7)
-
Curiosamente, parece que os convidados estavam mais
preocupados com o bem estar real que com o milagre. (v. 8 e 9)
Pode-se supor que a consciência deles estava bem mais adormecida que
a do seu senhor.
E qual o pecado, que foi tão duramente punido?
O primeiro: cegueira frente a história. Baltazar conhecia o relato
do capítulo 5 (v. 18-22), mas não o levou em conta, na hora de
escolher e adotar os princípios morais pelos quais agiria. Quem
sabe, tomou a interpretação do seu nome (Bel-shar-uçur, "Bel
proteja o rei") como um privilégio do qual era merecedor (seu
deus, Bel, era seu servo), e não uma dádiva, pela qual deveria ser
grato. A humilhação de Nabucodonozor não lhe abriu os olhos para o
fato de que, maior que o poder real, era o um Deus que ele nem
conhecia. Se Nabucodonozor II, conquistador de Jerusalém, que matava
e deixava viver segundo seu próprio juízo, foi transformando em
animal, o que poderia se suceder a ele, Baltazar, seguramente um
governante bem menor?
Segundo: desrespeito para com as coisas sagradas. Baltazar ordena que
os utensílios separados para o culto em Jerusalém fossem utilizados
como copos para ele e seus convidados se embriagarem, em um desprezo
óbvio pelo significado dos objetos. Daniel traduz o comportamento
deles como desafio: "tu te levantaste contra o Senhor do céu"
(v. 23). Não foram os utensílios sagrados que foram profanados, mas
Aquele a quem serviam.
Terceiro: idolatria e cegueira espiritual. O versículo 23, em sua
parte final, resume bem: "...mas o Deus que detém teu
respiro entre suas mãos e de quem dependem todos os teus caminhos,
tu não o glorificaste!" Ele poderia desconhecer o que
Iahweh dissera por intermédio do profeta Isaías, cerca de 200 anos
antes: "Eu sou Iahvweh; este é o meu nome! Não cederei a
outrem a minha glória, nem a minha honra aos ídolos" (Is
42.8). Mas não desconhecia a história de "seu pai".
Usando da linguagem teológica, Baltazar talvez não conhecesse a
revelação sobrenatural, mas conhecia a natural. Paulo comenta sobre
essa situação na carta à igreja em Roma: "Sua realidade
invisível... tornou-se inteligível, desde a criação do mundo,
através das criaturas, de sorte que não têm desculpa. Pois tendo
conhecido a Deus, não o honraram como Deus nem lhe renderam
graças... tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus
incorruptível por imagens do homem corruptível" (Rm
1.20-22).
Na verdade, os três pecados formam um roteiro tão lógico, que mais
parecem ser um só, numa cadeia de causas e consequências.
O juízo vem pesado. Baltazar foi avaliado, diretamente e
indiretamente. Diretamente, pela sua conduta individual, já que sua
atitude no festim não deve ter sido exceção, mas sim regra. O
álcool, quando muito, eliminou o resto de censura que poderia
existir. Portanto, "foste achado deficiente".
Indiretamente, seu reino "foi medido e (Deus) deu-lhe fim".
A história mais uma vez se repetiria em ciclos: um império cairia
pelas mãos doutro, mais competente no momento:"seu reino foi
dividido e entregue aos medos e aos persas". Curiosamente,
os motivos espirituais das quedas de Israel e Judá foram bem
semelhantes...
A história geral nos dá duas informações extras, que nos auxiliam
a compor um quadro maior. A população aclamou o conquistador como
libertador e, se houve resistência, essa deve ter sido débil. O
tecido social estava frouxo, e a incompetência
política-administrativa de Baltazar foi um dos lados que levaram a
sua queda. Paralelamente, houve um juízo divino severo. A história
geral nos informa a respeito das causas acessíveis por meio de
métodos organizados; o escritor sagrado, a respeito das causas
acessíveis somente pela Revelação.
publicado originalmente em http://crerpensar.blogspot.com.br/2008/09/mane-mane-tecel-parsin.html, 01/09/08
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